Teste de genotipagem: necessidades e critérios


O sucesso do tratamento anti-Aids tem aumentado o tempo e a qualidade de vida das pessoas soropositivas. Porém, ele pode ficar comprometido a longo prazo pelo desenvolvimento da resistência aos anti-retrovirais, que leva à falha do esquema terapêutico utilizado. A adesão adequada ao tratamento e o teste de genotipagem constituem os principais fatores a serem considerados para o sucesso da Terapia Anti-Retroviral (TARV) potencializada.

Apesar de algumas limitações, o teste traz benefícios e esclarece pontos essenciais para a definição da continuidade do tratamento. Uma pesquisa realizada no Brasil pela Rede Nacional de Genotipagem (Renageno), numa amostragem de 500 pacientes, indicou que apenas 7% não apresentavam resistência a nenhum dos anti-retrovirais em uso.

Já um outro estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com 791 pacientes revelou números ainda mais preocupantes: somente 1% não apresentou resistência. O mesmo levantamento demonstrou que 94,7% eram resistentes aos inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (ITRN), 58%, aos inibidores da protease (IP), e 48%, aos inibidores da transcriptase reversa não-análogos de nucleosídeos (ITRNN).

A resistência às drogas da terapia anti-retroviral está fortemente associada à falha do tratamento, o que exige resgate terapêutico. Nessa hora, o teste de genotipagem pode ser instrumento útil na seleção das drogas do novo esquema. Alguns estudos prospectivos já realizados selecionaram pacientes com falha terapêutica e os organizaram em dois grupos. Em um deles, a mudança do tratamento se baseou apenas na experiência clínica; no outro, também no teste de genotipagem. Os resultados foram os seguintes:

No grupo da genotipagem, o resgate foi significativamente melhor. Além de a queda viral ter sido mais significativa, maior número de pacientes obteve carga viral indetectável, que é o efeito desejado da terapia.
O teste não era perfeito. Apenas cerca de 30% conseguiram o sucesso absoluto, que é a carga viral indetectável.
Em outras palavras: a genotipagem tem limitações em algumas situações. Mesmo assim, é o melhor instrumento diagnóstico que se tem no momento para enfrentar a resistência do HIV aos anti-retrovirais. Logo, é preciso aprender a lidar com o teste, pois ele pode ajudar a prolongar a vida do tratamento e, conseqüentemente, a das pessoas com HIV/Aids.
Como o HIV se torna resistente

Desde 1996, a TARV é uma realidade. Graças a ela, potencialmente não se morre mais de Aids. Porém, ao menos por enquanto, os pacientes estão provavelmente fadados a usar os anti-retrovirais pelo resto da vida. O efeito desse uso prolongado todos conhecem: em algum momento, por algum motivo, o remédio pode parar de funcionar, ocorrendo a chamada resistência. Ela pode ser conseqüência da falha terapêutica: o anti-retroviral deixa de atuar devido à falta de boa adesão ao tratamento. Mas também pode parar de funcionar porque o vírus começa a ficar resistente, depois de muito contato com a droga.

A resistência é um fenômeno descrito em praticamente todas as áreas médicas no qual se expõe algum microorganismo à pressão seletiva dos antimicrobianos. Com o HIV e os anti-retrovirais, acontece o mesmo. Existem dois tipos de resistência, a primária e a secundária.

A resistência primária é aquela presente antes do uso do remédio. Normalmente, nesses casos, a pessoa foi infectada por um vírus resistente. A resistência secundária aparece pela seleção que o próprio antiretroviral proporciona no HIV, não só porque é um vírus que muda muito, mas também porque consegue se evadir do sistema imune e criar resistência às drogas.

Uma pessoa infectada que não esteja fazendo uso da TARV gera 10 bilhões de vírus por dia. Isso significa que todas as mutações possíveis ocorrem todos os dias. Mais: diariamente aparecem vírus com mutação de resistência a todos os antiretrovirais disponíveis. Normalmente, o vírus com mutação de resistência não causa problema, porque não se fixa, ou seja, não consegue infectar a próxima célula. Afinal, está competindo com 9,999 bilhões de outros vírus por um repertório limitado de células CD4. A probabilidade do HIV achar um linfócito é remota.

Porém, quando essa pessoa passa a usar a TARV, todos os vírus sensíveis são eliminados sobrando apenas os resistentes. Na hora em que isso acontece, o vírus com mutação de resistência infecta a célula CD4. Cada CD4 infectado produz, então, de cinco mil a dez mil vírus idênticos àquele mutante. Esse é o mecanismo de seleção. A pressão seletiva do anti-retroviral seleciona o vírus que preexiste e que já tem a mutação de resistência. Tal mutação pode provocar três tipos de impacto no tratamento:

Diminuir a suscetibilidade a determinado anti-retroviral, fazendo com que o tratamento funcione menos.
Produzir resistência cruzada, impedindo ou reduzindo a ação de um anti-retroviral nunca utilizado. Isso acontece devido a semelhanças no mecanismo de ação, mas também por coincidência.
Aumentar a ação de outros anti-retrovirais.
Tipos de resistência: primária e secundária

Em 1998, a resistência primária nos Estados Unidos era 3,5%; em 2000, passou para 14%. No Brasil, subiu de 3,5% em 1997 para 7% em 2000. Infelizmente, esta é a tendência: a resistência primária aumenta cada vez mais, já que mais pessoas estão usando anti-retrovirais. Junto, cresce a probabilidade de quem se infectou mais recentemente ter adquirido um HIV já com mutação de resistência.

A pergunta que a maioria dos especialistas faz é se vale à pena fazer genotipagem com pessoas em início de tratamento. O teste de genotipagem é fundamental para detectar a prevalência de resistência primária na população. Nesse caso, racionalmente, é feito em pessoas com infecção recente. Primeiro, para retratar o que está acontecendo no momento. Segundo, porque existe a possibilidade teórica de essa pessoa se infectar com um vírus resistente aos anti-retrovirais.

Hoje, sabemos que o vírus mutante leva desvantagem em relação ao tipo selvagem. Quando a pessoa é infectada pelo vírus resistente, ele é arquivado no sistema imune. Mas se aparece na circulação o tipo selvagem, esse último tem maior probabilidade de predominar no sistema do indivíduo. Conseqüentemente, talvez depois de alguns anos de infecção, só seja possível detectar o vírus sensível.

Porém, na hora em que essa pessoa começa a usar o anti-retroviral, o vírus resistente, que está escondido, aparece com muita rapidez. Isso é teórico. De qualquer forma, saber a prevalência da resistência primária é importante para ditar a política de saúde. Em Los Angeles (EUA), por exemplo, 17% dos recém-infectados já têm resistência aos inibidores da transcriptase reversa não-análogos de nucleosídeos (ITRNN). Portanto, se alguém for começar o tratamento naquela região sem a genotipagem, o melhor é não usar esquemas contendo os ITRNN.

No Brasil, com uma taxa de 7% de resistência primária, a genotipagem não faz sentido como política de saúde pública para o país. No entanto, é uma questão que deve ser examinada regionalmente. Pesquisa realizada em 2002 em Santos (SP) mostrou que 35% das pessoas com infecção recente já tinham vírus mutante. Nessa cidade, a genotipagem para começar a TARV talvez já se justifique.

Por um ou por outro motivo, a resistência do HIV ao esquema anti-retroviral quase sempre leva o tratamento a fracassar. Existem três tipos de falha: a clínica, quando o paciente passa a apresentar sintomas; a imunológica, que se caracteriza pela queda dos linfócitos CD4; e a virológica, que se revela pelo reaparecimento do vírus no sangue.

Carga viral indetectável é a prova de que o HIV está sendo destruído eficazmente pelo esquema adotado. Ao contrário, sempre que o HIV começa a ser detectado de novo num paciente em tratamento, tem-se a falha virológica e a possibilidade de se ter desenvolvido a resistência aos medicamentos.

Tipos de teste: fenotipagem e genotipagem

A detecção do que está acontecendo pode ser feita tanto pelo teste de fenotipagem quanto pelo de genotipagem. Hoje em dia, o primeiro tem sido usado normalmente para pesquisas e o segundo pode ser adotado na prática clínica.

Normalmente, verifica-se a resistência de bactéria ou fungo por meio de material de coleta do paciente colocado para se multiplicar no sistema de cultura. O microorganismo que cresce é testado com certos antibióticos ou antifúngicos. Se, na presença de determinada droga, o patógeno continua se multiplicando significa que está resistente a ela; se é inibido, a droga é sensível e pode ser usada para tratar a pessoa.

Com o HIV, pode-se fazer o mesmo. É o teste de fenotipagem: detecta o comportamento do HIV. Cultiva-se o vírus na presença de cada um dos anti-retrovirais, para saber se está resistente a algum deles. No entanto, antes de haver a alteração do comportamento do HIV diante do remédio, o genoma do vírus altera-se. A mudança na estrutura genética do vírus pode predizer qual será o seu comportamento. É exatamente o que verifica o teste de genotipagem: analisa as regiões do genoma do HIV que têm contato com os antiretrovirais, ou seja, a transcriptase reversa e a protease.

A genotipagem revela a quais anti-retrovirais o HIV está resistente, permitindo redirecionar o tratamento. Mas é preciso esclarecer:

A genotipagem não informa quais antiretrovirais devem ser usados, mas quais não devem ser usados.
Resistência não detectada não significa obrigatoriamente que ela não exista. Pode ser que a resistência esteja presente e o teste não a tenha "enxergado". Portanto, o valor preditivo do teste negativo é baixo: resistência não detectada não quer dizer que, necessariamente, o remédio vá funcionar.
Já o valor preditivo positivo é alto. Resistência presente é sinal quase certo de que o anti-retroviral não vá funcionar.
Apenas parte dos pacientes se beneficia, e uma das razões é a disponibilidade de poucas drogas. O sucesso total é possível somente em cerca de 30% dos casos. Ou seja, com base na genotipagem muda-se o esquema terapêutico.
Genotipagem já é consenso

A genotipagem pode ser útil em várias situações clínicas, mas uma é unanimidade: falha terapêutica virológica. Quando se opta pela introdução do coquetel, recomenda-se nova carga viral após três a quatro semanas. O objetivo é documentar se o tratamento está funcionando ou não. O efeito máximo ocorrerá em seis meses, quando se espera que fique indetectável. Depois, a cada três ou quatro meses o paciente precisa repetir o exame.

Se nesse acompanhamento a carga viral ficar positiva novamente, é aconselhável mudança no tratamento, pois houve falha virológica. Nessa hora, o médico tem dois caminhos: tentar predizer qual é o próximo esquema com base no seu conhecimento ou lançar mão do teste de genotipagem.

Por isso, o Programa Nacional de DST/Aids implantou a Renageno, para executar e interpretar exames de pacientes atendidos no Sistema Único de Saúde. Para fazer o teste, o paciente deve apresentar falha terapêutica virológica e estar em uma das situações:

Primeira falha em tratamento com terapia dupla.
Primeira falha com terapia tripla contendo ITRNN.
Primeira ou segunda falha em terapia contendo IP.
Além dos critérios acima mencionados, a Renageno, exige carga viral acima de 5.000 cópias/ml para realizar o teste. Também é essencial que a coleta de sangue para teste de genotipagem seja realizada na vigência de terapia, isto é, o esquema anti-retroviral em uso não deve ser interrompido e a necessidade de adesão nas semanas que antecedem a coleta deve ser enfatizada. Dois cuidados, porém, são fundamentais para solicitação da genotipagem:

A última carga viral precisa ter sido feita há, no máximo, dois meses. Às vezes, o exame é antigo e o resultado não reflete o momento.
O exame tem que ser sempre na vigência do tratamento, pois quando o remédio é suspenso, o vírus resistente começa a ficar invisível. O vírus com mutação tem menos fitness que o tipo selvagem, também arquivado no organismo do paciente. Ou seja, como ele é "deficiente", existe a probabilidade de o vírus selvagem sobrepujá-lo em poucas semanas. O teste perde então sensibilidade. O vírus resistente está presente, mas o exame não o "reconhece". Por isso, o ideal é o paciente tomar o remédio até o dia da coleta.
Além de fazer o teste, é preciso certa experiência para que os resultados que ele indica sejam realmente úteis. A genotipagem é um exame superespecializado e não é fácil analisar a "sopa" de letrinhas e números que ele oferece. Muito cuidado é exigido ao se interpretar cada informação. Se o laudo não for suficientemente esclarecedor, o clínico deve buscar ajuda de um virologista para interpretar melhor os resultados do exame.

O médico precisa atualizar-se sempre para acompanhar os avanços que as pesquisas têm conquistado nessa área. A genotipagem é uma realidade, e a tendência é ser usada cada vez mais no tratamento com anti-retrovirais. Por isso, o mais aconselhável que o teste seja criterioso. É a melhor forma de preservar esse instrumento que pode ser muito útil para o resgate terapêutico.

Gravidez e outras urgências

A indicação do teste de genotipagem na falha terapêutica é unanimidade. Mas existem outras situações em que potencialmente ele pode ser útil:

Profilaxia da transmissão materno-fetal (vertical). A maior parte dos consensos já recomenda o teste nas gestantes infectadas pelo HIV. Os principais argumentos: situação de urgência em que não se tem tempo para ajustar depois e demora na diminuição da carga viral da mulher aumentando a probabilidade de transmissão. Então, para reduzir ao mínimo a possibilidade de erro no esquema adotado, pode-se lançar mão da genotipagem.
Profilaxia após acidente ocupacional. Alguns consensos já sugerem a genotipagem nessa urgência. O teste deve ser feito no paciente fonte. No entanto, não se espera o resultado para iniciar o tratamento. O profissional de saúde começa a receber imediatamente o anti-retroviral e, dependendo do exame, muda-se o esquema.
Antes de iniciar a TARV. Alguns consensos sugerem o teste em pacientes virgens de tratamento, para detectar a resistência primária. Isso talvez valha a pena em locais onde é alta a sua prevalência. Mas com a seguinte ressalva: se transcorrer muito tempo entre a infecção e o teste, há a possibilidade teórica do vírus resistente, que foi transmitido, não ser detectado. Existe o sucesso parcial, que é reduzir a carga viral, embora ela não fique indetectável. Mas há casos em que o teste demonstra que não há mais nenhum anti-retroviral para ser usado, pois o HIV está resistente a todos. O que possibilita lidar de maneira mais realista com o paciente.
Como é o teste de Genotipagem

Simplificadamente, o teste de genotipagem obedece às seguintes etapas:

O sangue do paciente é coletado;
Isola-se o vírion, que é o vírus livre no plasma sob a forma RNA;
Usa-se, então, um método laboratorial para purificar o RNA desse vírion e outro para transformar esse RNA em DNA;
Em seguida, amplifica-se pela técnica de PCR (reação de cadeia pela polimerase) as regiões do genoma do vírus que têm contato com os anti-retrovirais, ou seja, a transcriptase reversa e a protease. Com a ajuda de enzimas, utiliza-se aqui a mesma estratégia que o HIV usa para se replicar.
A amplificação mostra quais as seqüências de nucleotídeos dessas regiões.
Por fim, comparam-se as seqüências identificadas com aquelas que são normais nessas posições no vírus selvagem. Descobre-se, assim, as mudanças e se elas têm relação com a resistência.

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REDE JOVEM RIO+

A REDE JOVEM RIO+ é um Movimento Social Estadual, sem vínculo político-partidário ou religioso, constituído fundamentalmente por adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos, atuando na inclusão social, na promoção do fortalecimento biopsicossocial e do protagonismo destes, independentemente de sexo, identidade de gênero, sexualidade, credo, cor, etnia, nacionalidade, naturalidade, escolaridade, classe social e sorologias

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